quinta-feira, 26 de março de 2009

Texto: "Montanhas"

A primeira grande viagem que fiz na vida foi quando tinha seis ou sete anos. Fomos – minha família e eu – do Norte do Paraná até Amparo, uma pequena cidade do interior do estado do Rio de Janeiro. Uma distância de quase mil quilômetros.

Lembro que saímos bem cedo, numa pequena caravana: o fusquinha amarelo do meu pai e o corcel vermelho do Tio Lino, com os primos a bordo. A viagem foi demorada e cansativa, e quando chegamos já era noite.

Dormimos num lugar improvisado, com colchões emprestados, em frente à praça da cidadezinha. Quando amanheceu, nos dirigimos à casa dos parentes, que moravam na zona rural.

O tio do meu pai era conhecido como Moço Rodrigues. Apesar de viver de maneira muito simples, era um dos maiores produtores de leite da região. A sede da fazendinha em que vivia ficava num pequeno vale, cercado por vários morros de cume arredondado.

Para mim, essas pequenas elevações de terra tornaram-se, de imediato, uma verdadeira cordilheira que implorava para ser escalada e conquistada. “O que será que tem atrás dessas montanhas?”, pensei. Lembrei-me das várias vezes em que meu pai dizia que o oceano ficava depois da Serra do Mar (“montanhas muito altas”). Quem sabe eu não conseguiria ver o mar, quando chegasse ao cume... (só fui conhecer o mar aos 12 anos; mas essa é outra história.)

* * *

Depois dos cumprimentos e tapinhas recebidos na cabeça, dados por parentes até então desconhecidos, saímos – eu, irmãos e primos – correndo em direção às montanhas. Enquanto corríamos, era possível ouvir os gritos de alerta da minha mãe, para não correr e ter cuidado. Não olhávamos para trás, pois a luta agora era para saber quem chegaria primeiro ao cume.

O início da escalada foi alucinante. Subíamos com o auxílio das mãos, pois a passagem constante do gado formava degraus e pequenas barreiras. Mais de uma vez caí, mas sempre levantava e voltava a subir o mais rápido que podia. Não sentia dores nem cansaço. Queria apenas chegar primeiro lá em cima.

Quando estava quase chegando ao topo, vi marcas de sangue no joelho. Naquela época eu vivia me machucando, e por isso não dei importância. Eu queria ver logo o que havia atrás das montanhas.

Chegamos quase todos juntos lá em cima. Lembro bem da ansiedade. O segredo finalmente seria desvendado. O horizonte foi se abrindo, abrindo, até que lentamente consegui avistar... mais montanhas! Que desilusão. Decidimos voltar.

Durante a descida os machucados começaram a doer. O principal deles virou uma cicatriz no joelho, que me acompanha até hoje. Quanto às demais lembranças da estadia em Amparo, perderam-se no tempo.

* * *

O que eu não sabia, naquela época, aos sete anos, é que aprendera uma das principais lições da vida: a de que não importa o que há além das montanhas; o mais importante é a escalada em si, a caminhada. É durante esse processo – muitas vezes difícil – que nos machucamos, caímos, levantamos e amadurecemos. Aprendemos a estender os braços para ajudar alguém, e identificamos nossas limitações. Tornamo-nos pessoas melhores e mais fortes.

E descobrimos também, a duras penas, que mesmo depois das montanhas mais altas, não raro encontramos apenas mais montanhas...

sábado, 7 de julho de 2007

Texto: "O Método"

A sala era idêntica àquelas usadas para interrogatórios policiais: pequena e sem janelas; no centro, uma pequena mesa e no alto uma luminária pendurada no teto, cuja luz descrevia um círculo em volta da mesa; numa das paredes laterais, um daqueles grandes espelhos que refletem de um lado e permitem que se veja do outro.

Dentro da sala, em frente à mesa, apenas um rapaz, sentado numa das cadeiras. Do outro lado do espelho, em outra sala, três homens apenas observavam.

– O que quer que a gente faça com o garoto, Chefe? – perguntou Peçanha, olhando para O Garra. Peçanha era alto e corpulento. Tinha sobrancelhas grossas, uma calvície pronunciada e barba por fazer. Sua voz era grave e rouca.

O Garra, como sempre, não respondeu de imediato. Levou o cigarro aos lábios e tragou profundamente. Com os olhos ainda fixados no jovem, soltou lentamente a fumaça. Fez mais uma pausa e disse praticamente sem alterar a voz:

– Faça-o falar.

Peçanha sabia bem o que ele queria dizer com isso. Já havia utilizado o método várias vezes para atingir seus objetivos. Esse era, aliás, um dos motivos pelos quais admirava tanto o chefe: O Garra havia criado o método! Mas Peçanha, com o tempo, não só aprendeu todos os segredos como também introduziu algumas melhorias. E agora teria a chance de fazer uma demonstração prática diante do seu mestre.

Atento ao rápido diálogo, Sombra acompanhava cada palavra e cada gesto dos homens à sua frente. Diferentemente dos outros dois – o corpulento Peçanha e o atlético Garra – Sombra era baixinho e arredondado. Alguns diziam que seu corpo se assemelhava a um quibe: fino nas pontas, arredondado no centro. Tinha pele clara e bochechas rosadas. Apesar de estar sempre muito bem vestido, tinha aparência cansada e ensebada, pois suava muito. Para Sombra, estar participando desse processo era uma grande oportunidade, e ele não perderia nenhuma chance para impressionar tanto o seu chefe Peçanha quanto O Garra.

* * *

O jovem se assustou quando a porta da sala abriu e por ela entraram dois homens. Um grandalhão, com jeito de ogro, e um baixinho e gorducho.

Os homens se aproximaram lentamente, com expressão séria e cara de poucos amigos. Cada um sentou numa cadeira, de frente para o jovem. O gordinho, apesar de tentar passar uma aparência de seriedade, não conseguia tirar um riso meio irônico da cara.

Peçanha puxou conversa com sua voz de trovão:

– Então, garoto. Quando é que você vai entregar o projeto?

O rapaz tentou iniciar uma explicação:

– Olha só. Vocês precisam entender que há muitas variáveis em jogo. Estamos usando o RUP e de acordo com essa metodologia...

– Você não tá entendendo. – Peçanha interrompeu. – Tua cabeça tá a prêmio, rapaz. Pra você ter uma idéia, O Garra em pessoa tá acompanhando esse projeto. E ele quer uma data. Quer saber quando você vai entregar a parada.

– Mas ele precisa entender que não depende só de mim. Além disso...

– Porra, moleque! – gritou Peçanha, ao mesmo tempo em que dava um tapa na mesa e curvava o corpo na direção do rapaz. – Será que ainda não caiu a ficha? Não dá pra enrolar mais! Queremos a data da entrega. Agora!

– É, moleque, agora! – completou Sombra, com aquele risinho irônico.

Novamente o rapaz tentou explicar:

– Não tenho como dar um prazo agora. Ainda não terminamos o levantamento. Outra coisa: precisamos validar os...

– Bom, eu avisei. – interrompeu novamente Peçanha. Em seguida olhou para o lado. – Sombra, traz aquela nossa caixa. Vamos ver se essa data sai ou não sai. – voltou os olhos novamente para o jovem. – Tá fodido, moleque!

– É. Se fodeu, moleque! – emendou o baixinho.

Sombra se levantou e saiu da sala. Um minuto depois voltou com uma caixa de madeira nas mãos e a colocou no chão, ao lado da mesa. Olhou para Peçanha e disse com aquele risinho indefectível na cara:

– Vai querer começar com o quê, Chefe?

– Pega aí aquele fio desencapado.

– Vocês estão de sacanagem! – gritou o rapaz, percebendo pela primeira vez a verdadeira intenção daqueles homens.

– Sacanagem? Você ainda não viu nada... – respondeu Peçanha, enquanto recebia os fios das mãos de Sombra.

Junto com os fios Sombra entregou também uma pequena caixa, onde os cabos foram conectados. Na parte frontal da caixa, um botão, e em volta dele vários números em seqüência.

Peçanha olhou para Sombra:

– Amarra os fios no saco dele.

O jovem tentou reagir.

– Nem fodendo! Vocês estão... – não conseguiu completar a frase, pois levou um forte tapa na orelha, dado por Peçanha.

– E aí? Vou perguntar pela última vez. Quando é que você vai entregar esse maldito projeto? – ameaçou Peçanha.

O jovem começou a chorar:

– Já falei. Não tenho como dar um prazo. Ainda preciso... AAAAAAHHHHHH – soltou um grito de dor ao sentir a eletricidade correr com intensidade pelo seu corpo.

Mais uma vez: – AAAAAAAAHHHHHHHH.

E outra: – AAAAAAHHHHHHHH

Peçanha desligou o aparelho e olhou para Sombra. Percebeu que o baixinho olhava fixamente para o rapaz, com expressão de prazer. Voltou os olhos novamente para o jovem.

– Garoto, acho que você já percebeu que não estamos brincando. To falando, passa logo uma data que a gente te libera.

– Já falei, não tenho como dar um prazo agora – respondeu o rapaz, soluçando.

– Bom, foi você quem escolheu. Sombra, pega aí o alicate.

– Calma! – gritou o jovem. – Eu falo a data!

– Quando? – replicou Peçanha.

– Daqui a um mês. É o melhor que posso fazer!

– Tá doido, moleque? Tá achando que sou otário? Dá o alicate, Sombra!

– É... tá doido? – repetiu Sombra.

– Então na semana que vem – implorou novamente o rapaz.

– Tsc, tsc, tsc. – Peçanha balançou a cabeça. – Você não tá entendendo. Vamos ver o que o alicate consegue tirar de você.

Quando Peçanha começou a arrancar a primeira unha, o jovem soltou um grito desesperado:

– AMANHÃ! Eu juro! Amanhã! Pelo amor de Deus! Amanhã eu entrego o projeto.

– Ok. Acho que você tá começando a entender.

Ao terminar a frase, Peçanha olhou para o espelho e conseguiu ver a silhueta do Garra atrás dos reflexos. O mestre fez um sinal afirmativo com a cabeça. Sombra também percebeu, e soltou um risinho de êxtase.

Peçanha voltou-se para o rapaz e disse num tom de voz conciliador:

– Seguinte, a gente aceita o teu prazo. Pode ir.

O jovem tentou se recompor e levantou lentamente. Sentiu que o corpo todo doía. Foi caminhando devagar em direção à porta, mas antes de sair, ainda ouviu o último aviso de Peçanha:

– E se a aplicação tiver algum bug, você tá fodido!

– É, tá fodido! – completou Sombra.

O jovem nem quis olhar para trás.

 
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